Texto por Abonico R. Smith
O que é preciso apresentar um disco de rock para que ele seja considerado uma obra-prima? Conceito? Identidade? Regularidade? Diversidade? Contundência? Virulência? Criatividade? Hits? Pioneirismo? Ter a capacidade de causar um grande impacto? Marcar um momento de ruptura com o status quo musical vigente? Ter humor para brincar com tudo e todos e até mesmo si próprio? Apontar para o futuro? Perturbar o ouvinte a ponto de fazê-lo proferir sem pensar a exclamação indagativa perguntar “mas que porra é essa”?
Crucificados Pelo Sistema Bruto (atente aqui para a sobreposição de nomes de discos de Chitãozinho & Xororó e Ratos de Porão) possui tudo, tudo, tudo isto e mais um pouco. É o disco do qual o murcho, combalido e desacreditado rock made in Brazil e cantado na língua pátria andava precisando nesta segunda década de Século 21. Inacreditável seria acabar o ano de 2014 achando que Nheengatu seria o máximo de potência mostrado no segmento. OK, este é um trabalho de peso, respeito e qualidade. Mas também é assinado por quatro músicos que já passaram dos 50 anos de idade – que, inclusive, já haviam feito coisa semelhante quando estavam entre os 20 e os 30. Cadê a força do rock nacional fora de megafestivais e eventos patrocinados pelo marketing corporativo ou com batismo de logomarcas? Cadê a força do rock nacional fora de propagandas de TV a cabo ou refrigerantes ou ainda de reality shows musicais que banalizam e enquadram o artista diretamente para o gosto do público? Cadê a força do rock nacional justamente agora, neste momento especial, em que o vampirismo de grandes gravadoras não faz lá tanto sentido de acontecer? Parafraseando um Caetano de quase meio século atrás, então seria mesmo esta a juventude que saiu às ruas para dizer que quer tomar o poder?
Ainda bem que o Charme Chulo mostrou que as coisas não estão bem assim deste jeito. Bom, se você ainda não está entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada, apresse o passo. Corra. Compre, empreste, grave, roube, baixe – legal ou ilegalmente – o terceiro álbum deles, o trabalho que interrompe um silêncio fonográfico que já durava cinco anos e o primeiro disco duplo do rock da terra das araucárias e dos pinheirais. A opressão sempre dá força ao oprimido. Depois de passar um período nebuloso, repleto de chuvas, tempestade e ameaça de explosão interna, o quarteto curitibano se levantou, sacodiu a poeira e deu a volta por cima em grandioso estilo. Se durante este período turbulento o grupo já havia se firmado no primeiro escalão local, agora, com vinte músicas novas, põe de vez o pé na porta para reivindicar a sua (já merecida) vaga entre os nomes mais badalados da música independente nacional.
Nos seus dez primeiros anos de carreira, o Charme Chulo maturou uma identidade musical de impacto e sobriedade pouco vista desde que a beatlemania deu o aval definitivo para o rock no mercado musical brasileiro. Agora, com a identidade caipira incorporada de vez nas letras irônicas e instrumentais com os dois pés no pós-punk britânico da primeira metade dos anos 1980, o quarteto se permite alçar voos bem maiores e a exploração de novos terrenos. A veia punk é que mais sobressalta na primeira audição das vinte novas faixas. Palavrões que enchem o peito de orgulho, temas provocativos e polêmicos por natureza (como a defesa do vegetarianismo e dos animais ou a equação formada pela soma de sexo, religião e dinheiro) e um botão do foda-se apertado justamente porque, ao contrário de perder, tudo o que se tem é ganhar quando se é espontâneo, sincero, bem humorado e verdadeiro. Os Chulos, agora, explicitam todo o seu charme no primeiro álbum duplo feito por uma banda paranaense.
A trinca “Palhaço de Rodeio”, “Ninguém Mandou Nascer Jacu” e “Fuzarca” dá início ao álbum duplo prenunciando um primeiro disco cheio de futuros hits espalhados. “Por acaso sou palhaço de rodeio? Odeio!”, manda Igor na primeira, antes de cair naquela típico solo de guitarra hard rock que o falecido músico Piska introduziu nas duplas neossertanejas dos anos 1990. Já a segunda não perde a oportunidade de zoar com os tchus e tchas do neofunk tupiniquim. Aqui perdão não há, seja no recado direto do título ou em versos como “Ainda existem os palyboys com seus carros na Batel/ Mas em que ano será que eles vivem?/ Aceita a lição e fica por isso mesmo”. Com a ajuda dos amigos do Vanguart, a terceira é um country-punk esconde uma boa dose de sacanagem sob a falsa tinta do romantismo. Pois é: se alguém ainda tinha uma restinga de dúvida a respeito do rock caipira do Charme Chulo, a faixa veio para acabar com isso e demonstrar de que lado a dupla de mentores intelectuais do projeto (os primos Igor Filus e Leandro Delmonico) estão. A Barretos deles fica ali entre os inferninhos da Augusta eos muquifos underground espalhados pelo país com palcos que recebem pequenas bandas independentes e de fato alternativas.
Já plenamente envolvido logo de cara, você acaba se tornando alvo fácil de “É Que Ás Vezes (Melhor é Morar na Fazenda)”. Não há jeito de resistir ao refrão grudento, o arranjo em crescendo e a tese de que o nosso interior merece ser reocupado pelos jovens que já sobrecarregaram as grandes cidades. “Fui engolido, nem acredito/ Quero um êxodo urbano” manda o vocalista em defesa da retomada do território rural por aqueles que hoje são os sertanejos universitários que superlotam as capitais brasileiras.
Depois de um breve respiro na vinheta “Eita!” (na qual o humor dá o tom, com o violeiro Leandro incorporando um desastrado cantor de churrascaria que não perde a pose quando os botões da programação rítmica de seu teclado desandam), o ataque do Charme Chulo volta a ser brutal. “Dia de Matar Porco” é uma suíte em três atos que passa longe da chatice progressiva e faz você embarcar no maior clima de Oktoberfest em Santa Catarina. A música conta a histórioa – com tonalidades de drama existencial – de Anselmo e Toninho, açougueiros crucificados pelo sistema bruto, que praticam o ato quase instintivo de matar leitões para servir de comida de festa. “Como pra viver e vivo pra comer” é o refrão/riff com a precisão cirúrgica de um raio para não sair mais da cabeça. Quase na cola vem “Com o Diabo no Corpo”, inusitada investida heavy metal que escangalha com o direcionamento capitalista existente em muitas igrejas por ai. “Aqui Deus é tesão!”, decreta Igor, sob sussurros, logo de cara. “Aleluia, irmão!”, completa Leandro. Terreno no céu, terreno na Terra…
E o poder de fogo do disco um está longe de acabar. “Levante o Vestido”, canção resgatada da primeira demo da banda, produzida em 2003, ressurge com aquela dose de sacanagem literária herdada de Dalton Trevisan e uma divertida cara chula de ópera-karaokê. Chula também é “Bruta Alegria”, que sacaneia os “ô-ô-ô-ôs”, “a-ês” e “ê-as” do que há de mais comercial na axé music. Canção para bater na palma da chão, fazer a galera tirar do pé chão, com direito até a falsos gritos de multidão em gravações de disco ao vivo. Metalinguagem é pouco para definir a ironia aqui. E a primeira metade acaba com a tão praieira quanto brejeira “Capirinha”, capaz de rimar as palavras “reggae” e “stanheguer” e cutucar o duplo sentido da expressão que batiza a canção.
Se parasse por aqui, Crucificados Pelo Sistema Bruto já seria um álbum arrasador. Mas ainda tem mais dez faixas para nocautear quem ousa vir pela frente. E logo de cara, abrindo o segundo disco, estão os nove minutos e pouco de “Meu Peito é um Caminhão Desgovernado”. Para quem achava até então que a ousadia épica de “Faroeste Caboclo” nunca mais seria igualada ou batida, Igor, Leandro, Hudson Antunes e Douglas Vicente (os últimos, o baixista e baterista recém-incorporados à formação original) mostram que o limite é um pouco mais além. Sob inspiração da dupla Leo Canhoto & Robertinho, o Charme Chulo cria um segundo clássico quilométrico para o rock nacional. Intercalando trechos cantados e falados, o grupo conta a história do caminhoneiro que, assim como o alienígena Ziggy Stardust e caboclo João de Santo Cristo, já provou teve momentos ascensão e queda em sua vida. Com direito a crônica das estradas nacionais, alternâncias rítmicas, muitas farpas (ao capitalismo, à frouxidão atual do rock), clímax punk, encerramento catártico e até mesmo uma breve autocitação (é hilário o momento em que Leandro manda de forma torta na viola o início de “Polaca Azeda”, hit do primeiro disco dos curitibanos), este é o faroeste que vai marcar o rock brasileiro neste Século 21. E detalhe: com a viola caipira fazendo as vezes de guitarra.
“Quem Vai Carpir o Lote”, folkabilly Violent Femmes-se-junta-aos-Stray Cats, dispara contra a terra de ninguém das opiniões cheias de si que são as redes sociais da internet. Por sua vez, “Coisas Desesperadoras do Rock’n’Roll”, aposta na levada glam para turbinar a dramaticidade folk do Belle & Sebastian.A diversidade continua em “Carcaça Sensacional”, agora uma surf music para lá de sexual regada (novamente!) a muita influência literária do vampiro Dalton Trevisan. Já “Karaokê” resgata a sonoridade dos primeiros singles dos Smiths, com direito aos típicos falsetes morriseynianos. E “A Viola Foi Pro Saco” junta mais duas peças ao quebra-cabeça sonoro do disco dois: a batida dançante do Vampire Weekend com um elemento inédito ao mosaico world music dos nova-iorquinos, a viola da melhor escola Almir Sater.
Você acha que acabou por aí? Nananinanão. Tem mais duas vinhetas instrumentais (“Vinho de Mesa”, outro belo momento de inspiração da faceta violeira de Leandro, e o ska-punk “Novos Ricos”) e a valsa-folk medieval “Vale a Pena Morrer Pelo Protesto”. Esta é mais uma faixa épica de Crucificados Pelo Sistema Bruto. Sob cinco minutos de violões, flautas e cordas sintetizadas, Igor questiona se até onde vale arriscar a vida pelos ideais ou se é melhor deixar-se ser crucificado pelo sistema bruto. Curiosamente composta antes dos protestos que tomaram as ruas brasileiras em junho de 2013, a letra reflete o sintoma geral de insatisfação do povo brasileiro com o que acontece ao seu redor. Entre as citações e inspirações da faixa estão o filme/livro Clube da Luta, o Joy Division e até os religiosos franciscanos.
Vigésima é última faixa deste álbum duplo, “Multi Stillus” é o tiro de misericórdia do Charme Chulo. A banda incorpora a veia electroindie do New Order mas ainda deixa a viola a tiracolo. A batida eletrônica é irresistivelmente dançante e conta com letra de rap nonsense, que mistura idiomas e citações das mais absurdas. De quebra, há dois refrões poderosos: um em falsete(“Dá uma dor de tanto vazio/ A raça humana transada por um fio”) e outro que recicla um dos clássicos slogans punks do Camisa de Vênus de forma literalmente brejeira (“Não haverá amor mas nem que a vaca tussa nesse mundo nunca mais”). No final, um berrante vem para decretar de vez a nova ordem no rock nacional.
Você pode até considerar o veredito precipitado, mas não existe outra possibilidade a não ser dar a este álbum a não ser a nota máxima. Dez, dez, dez, dez! Depois de colocar os próximos anos do rock verde e amarelo na balança, a gente volta a conversar sobre a força e a suma importância de Crucificados Pelo Sistema Bruto para a História da música brasileira.
Link original: http://www.mondobacana.com/musica-outubro-2014/charme-chulo.html